2.01.2006

Errante


Percorri a face dos caminhantes errantes naquele tarde de Inverno. Os flocos de neve, passadeiras de um rumo incerto. Trazia nos meus olhos os lagos de Verão e tentava escamotear a presença dos traços que me trouxeram ao presente. Pensava naqueles momentos indecifráveis e irrepetíveis, nesses momentos em que o tempo era um espaço e o espaço um tempo coerente. O tormento do momento fez-me perceber de que folhas são feitas as memórias que caem de uma árvore que teima em ser irresistível ao domínio. Era um espaço de ruas interceptáveis, as mãos sibilantes rodopiavam no desejo. Porque teria sido assim? Não uma pena escritora, não um olhar delicioso ou uma cintura torneada pelo vazio e ausência. Uma mescla de reconhecidos tumultos. O cabelo longo, liso, imaginante e imaginado não era de Sansão. As formas brancas, luzidias, íngremes, apaixonadas pelo tacto não eram desenhos no papel químico dos mitos de quem ousa desafiar. A passada deambulante, errante, construída de olhares que me viam e me empurravam para o irreconhecimento. Um ponto entre o nada e o desejo. As delgadas ruas do passado conduziam-se sem demoras e sem agravos. Agrafei nessa noite o aleatório ao sonho. Não insisto em sonho, apenas o foi no momento em que os olhares trocaram-se e a gravidade das memórias exultaram-se. Perderam-se vidas, aquelas que viriam na cesta que cada um traz perto do coração. Escrevemos no corpo nu um corpo desejável que seja decifrado concomitantemente com a ilusão da fusão. Não foi o aço aparente das normas com que se reescrevem as vidas que necessitei de me expandir. Os passos eram cintilantes e a pele um tapete com um mural com insígnias. Nunca o teria visto sem a ríspida ausência. Era um quadro martelado pelo vazio, diria. Era um novo sânscrito, uma velha descoberta, um novo rosto e uma velha e recalcada rua. O fundo em que os trotes dos cavalos marchavam, provocavam espasmos de alegria. Não seria um tempo deslizante, sem memória. Um fluído coerente em que à superfície nada era preciso dizer excepto o que as palavras mudas do olhar e do silêncio transmitiam. Tinham sido anos leves em que a presença e a ausência não se distinguiam. O ponto em que chave entrou e abriu um rumo aceita agora chaves alternativas. As portas abertas e as janelas fechadas, o rumo centrífugo do coração. Nem o som das máquinas do tempo, nem os sussurros do passado enquanto a cama absorvia o vermelho do céu quente, importavam. Eram desígnios que serviam como fragmentos de um catálogo. Não tinha filme de nada, apenas uns olhos humedecidos e um caminhar errante. Abri os olhos, não havia parênteses naquele olhar fulminante. As formas das maçãs rosadas das bochechas do Sol iluminavam um ponto mais. Um lugar em que as sombras se desprendiam dos seus respectivos albergues. Era uma rota de olhares suspensos em que amar não seria apenas verbo mas um espaço fluído de intimidade intemporal. A pergunta não teria resposta, apenas se cozia com o futuro, um marco indelével.

No comments: