10.25.2005

Volta


Gostava de te ter podido abraçar quando te esvaziavas em sangue. As tuas palavras baças escorriam descoordenadas pela estrada. Vi-as mudar de rumo quando entravas para o local onde te esquecerias. Estavas estendida e mil suores te seguravam. A tua face rosada estava espezinhada A tua cara esquecida vestia-se de abandono. A luz que brilhava nos teus olhos reflectia que no meu olhar a vida também estava a partir. Gostava de te ter podido abraçar. Gostava de te ter coberto com o meu véu, enganar-te quando morrias e trazer-te para a vida. Estavas abandonada e dizias-me palavras que, sedentas de toque, insurgiam-se contra a audiência que te amedrontava. Perguntaste porque razão os flashes não te mordiam e as fotos não te guardavam a memória. Pois bem, tive que te dizer que a tua memória não se guardava em ilusões de momentos. Estavas a morrer e eu…eu estava a morrer contigo. Lentamente senti-te ir devagar, o teu corpo brilhou intensamente durante segundos e quando te olhei nos olhos apenas vi que tu já não estavas lá. Apenas vi que também tentava alcançar-te mas tu, sem pressa, abandonavas-te, deixando-me com memórias sem futuro, e pior que isso, deixavas-te toda em mim. Sabes, custa guardar-te completamente agora que o teu traço não imprime a tua vida. Continuas impressa num tom imagético semelhante ao nascer do dia. Continuas a nascer todos os dias. Todas as noites morres-me. Todas as noites acordas-me para me dizer que não estás sozinha, que estás com as minhas recordações, memórias, com os tempos que críamos. Dizes-me também que não sentes o tempo e que por isso tens dificuldades em seres. Eu respondo-te que deixei de ser eu no que em mim guardavas. Custa-me dizer-te que sou quase um álbum de memórias, das tuas memórias abraçadas às minhas, das nossas memórias. Por isso não ficaste surpreendida quando te disse que ando perdido, sem rumo, à procura das tuas formas nas silhuetas das árvores, no cantar do renascimento do pardal que me acorda sem ti, na relva que não espera por nós. Procuro-te no sorriso do bebé que olha para uma mãe sorridente. Procuro-te quando me deito no chão e apenas sinto a dureza a vida. Procuro-te quando caminho no horizonte, equilibrando-me no esquecimento para não poder lembrar-te. Sim, quero esquecer-te para me poder lembrar de ti novamente. Quero esquecer-te para que te acomodes em mim. Quero esquecer-te para morrer o que em mim morre. Quero esquecer-te para te deixar de procurar longe de mim. Quero-te esquecer para te deixar entrar outra vez, agora que entras de mansinho enquanto eu não te escuto. Quero-te aqui comigo, juntinho a mim a ver a vida a nascer, não te quero aqui comigo sem mim. Quero-me de volta para te querer relembrar.

1 comment:

Unknown said...

Gostei :)