Reprodução do texto de Gonçalo M. Tavares que foi lido na revista Cais nº 140.
Enjoy!
“ - O que estás a fazer? – perguntou a minha mulher quando me viu, contra o que é costume, demorar diante do espelho.
- Nada – respondi, estou a olhar para o meu nariz, para esta narina. Ao carregar sinto uma dorzinha.
A minha mulher sorriu e disse:
- Pensava que estivesses a ver para que lado te descai.
Voltei-me como um cão a quem tivessem pisado a cauda.
- Descai? O meu nariz?
E a minha mulher, placidamente:
- Claro, querido. Olha bem para ele; descai-te para a direita.
Tinha vinte e oito anos e, até então, sempre considerara o meu nariz se não propriamente belo, pelo menos era muito decente, como todas as outras partes da minha pessoa.”
Luigi Pirandello, Um, Ninguém e Cem Mil
Como este começo intrigante (intitulado “A minha mulher e o meu nariz”"), Pirandello inicia as hostilidades em relação à ideia de que há apenas uma auto-imagem única, apaziguadora. É que todos pensamos só ter uma identidade que, muitas vezes, confundimos até com o próprio nome. Porém, a identidade é bem mais complexa do que isso.
Moscarda, o protagonista deste romance, que descobriu ter o nariz descaído, mudou a partir desta descoberta. Eis, pois, a principal conclusão da personagem Moscarda, após essa consciência de si, súbita consciência que lhe chegou por intermédio, digamos, do nariz: “Para os outros eu não era aquele que, para mim, tinha até então julgado ser”.
Por norma há esta confusão. As pessoas pensam “eu sou como me vejo. Mas na verdade há os outros. Os que nos vêem”.
Construção
“Ah, você pensa que só se constrói as casas?”, exclama Moscarda. “Eu construo-me continuamente e construo-o a si, e você faz a mesma coisa”.
E é nesta construção infinita de imagens que surgem, então, cem mil Moscarda, tantos quantos os que o viam e construíam uma determinada imagem que se baseava nas experiências que com ele tinha partilhado.
Façamos as contas de forma clara. Quando Moscarda se junta a Dida e a Quatorzo, dois amigos, o somatório não era três. Ali não estavam, de facto, apenas três pessoas, pensa Moscarda. Estavam três Didas, por exemplo:
“ 1) Dida, como era para si própria;
2) Dida, como era para mim;
3) Dida, como era para Quatorzo”
Naquela sala de estar estavam, fazendo bem as contas, não três pessoas, mas sim nove. Três vezes três.
Quantos sou?
A identidade pode, assim, ser definida como uma partilha de experiências entre duas pessoas, ou seja: a identidade não depende apenas de quem é identificado, mas também de quem identifica. Neste sentido, não se poderia- ou não se deveria – falar de identidade individual, mas sim de uma identidade definida por um par: observador, observado. É o Outro que me dá a Identidade.
Roubo e infidelidade
Esta sensação de que se é “um, ninguém e cem mil”, leva Moscarda a ultrapassar vários limites. Eis um exemplo: pega em papéis que são seus com a sensação de que os está a roubar ao anterior Moscarda, o homem que ele era antes. E o “antes” significa: no tempo em que não tinha a consciência de que era muitos e não apenas um só.
Eis outro limite ultrapassado: sente ciúmes, sente-se mesmo enganado pela sua mulher quando ele, ele próprio, a beija. E isto porque, raciocina Moscarda, a mulher beija o Moscarda que vê, que construiu na sua cabeça, enquanto ele, Moscarda, para si próprio é outro. A sua construção, a construção da sua própria imagem, nada se assemelha à construção que a sua mulher fez. Ela não me ama, pensa Moscarda, ela ama a imagem que tem de mim.
Portanto, Moscarda acusará a mulher de estar a ser-lhe infiel no preciso momento em que ela o beija. Está a beijar a imagem que tem dele, não está a beijá-lo.
Eis, pois, o ultrapassar de uma certa loucura. Ou, afinal, de uma certa lucidez.
Não esqueçamos: o espelho engana; não somos um, somos cem mil.
Ao ler este texto lembrei-me de Wal Whitman, Fernando Pessoa e de todos aqueles que falam sobre o Self Dialógico…Devo dizer que a arte segue sempre à frente da ciência.
Não concordo com tudo o que está escrito neste texto, mas ele é, sem dúvida, um hino muito singelo à Identidade.
Incrível, não é?
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