11.05.2010

Ver-te

 

Ver-te foi como dobrar a memória e escorrer as letras, os sons, as expressões e a beleza dos meus quadros dos nossos momentos passados pelo meu corpo abaixo. Apanhei os cacos e misturei tudo novamente. Descobri que, no essencial, pouco mudou. A tua expressão congelou-se no tempo, cosida que está à tua identidade; o teu corpo continua ligeiro e esguio; os teus olhos continuam a ser lupas que fazem um zoom perscrutador; o teu andar continua como a brisa de quem vai ao infinito e que volta já; as tuas palavras continuam carregadas de ti, cheias do peso da tua leveza singela; o teu sorriso uma amálgama de presentes futuros que se oferecem sem vergonha e sem reparares.

Eu, vertido à tua frente, não querendo entornar-me nas tuas mãos e esquecido dos pormenores mas engrandecido pelas tuas marcas suaves, fui. Ali, fui. Nem mais, nem menos, diferente do que tiveste nos teus olhos límpidos e doces, igual na essência que me transporta pelos caminhos cruzados. Melhor, pior. Errático. Ansioso por respirar a vida por todos os poros. Errático. Como todos. Como eu. Como tu. Cheio de sonhos. Breves, longos. A preto e branco, coloridos com desejos exóticos e, ao mesmo tempo, de desejos simples, rudimentares, animalescos. Animal. Grosseiro no desejo de viver, terno no desejo de me viver.

Ver-te foi como ver-te na segunda página do teu livro interior e numa das páginas do livro aberto. Páginas rasgadas, palavras riscadas, linhas desalinhadas. Ver-te foi como colar uma nova página, inserir caracteres novos mas do mesmo desenho, o teu traço único. Ver-te foi beber-te um pouco e foi bom. Refrescante.

11.03.2010

Baralhar e voltar a dar

 

Muitas vezes jogamos um jogo estranho com a vida. Colocamos as cartas nas nossas mãos, ora viradas para baixo, ora viradas para cima. O vento gira-nos as mãos, vira-nos o ADN. Sabemos que alguma coisa está lá desenhada mas não conseguimos perceber os alcance dos traços ou a profundida das cores.

Paramos. Sonhamos. Caminhamos incessantemente. Continuamos a desenhar.

Caminhamos pelas ruas desertas cheias de nós, recolhemos os olhares das esquinas e os sinais de stop da realidade. A prioridade são as nossas angústias, desejos e incongruências. Sob a vulcanidade dos nossos passos jaz a imperiosa necessidade de subir os degraus das esferas: das nossas equações interiores, dos resultados das nossas divisões.

Uma das cartas revela-se. As ruas estremecem. A convulsão activa-se, o olhar brilha. Olha aqui um pouco de mim. Vê lá isto, este material de que eu sou feito, o material de que tu és feito.

Uma das cartas esconde-se. As ruas estremecem. A convulsão activa-se, o olhar cerra-se. Percorro as entranhas da revisão da minha constituição. Há alíneas da minha composição ausentes das cartas que apresento.

Volto a produzir as cartas da minha vida. Reparo que são diferentes mas…iguais. Mudei. Os traços e as cores continuam em composição. Volto a dar. Volto a perder. Volto a tentar. Volto a ser. Volto a ouvir-me. Volto a ver-me. Volto a ver-te.