10.16.2005

Casa de fantasmas- Vozes ignoradas


Sou uma casa de fantasmas. Sou vozes imensas que se mexem sem conhecerem o seu teor gélido. Sou um arrepio na espinha e sou o calor que veio para ficar. Sou a caneta que escreve a todo o momento as memórias fúnebres das minhas mágoas, que escreve bem mais vincados os carinhos que me consomem e me fazem conseguir viver numa casa de fantasmas. Somos casas de fantasmas. Temos vidas sem corpo, vozes remotas, ilusões hediondas da nossa escuridão. Temos uma geometria incerta, não sabemos muito bem onde estão as luzes que nos iluminam na penumbra nem sabemos muito bem como sair dos quartos escuros em que nos prendemos. Os mesmos onde nos trancamos e engolimos as chaves. A chave que abre a luminosidade e a chave que nos fecha numa prisão constituída pelas amarguras de quem, como um parto nu, quebra pela erosão do tempo. Temos mapas dentro de nós que apenas actualizámos quando um dia, depois de milénios solarentos, nos perdemos no jardim da inocência. E agora calo-me e ouso-me não falar enquanto não abrir os meus fantasmas à minha vida. Entrego-as para a lista interminável de crianças abandonadas. Custa vidas abandonar a vida que não quisemos viver ou que nos custaram tanto viver que até ficaram gastas. Custa chorar pelos fantasmas e não, como se devia, chorar com os fantasmas. Ou então, meus senhores de mim, como custa amar os fantasmas que constantemente prendemos dentro de nós, num qualquer canto remoto do nosso território pessoa. Quanto custa amar a voz que fulmina e que vai contra nós! Senhoras e senhores de mim, quanto custa amar fantasmas que são a dor que perdemos dos nossos amores! Crianças, mendigos, jovens namorados sem tecto, casais a discutir, não percam os vossos fantasmas num qualquer vento perdido nas tempestades da memória! Amem a dor que vem do amor que vos frustrou. Olhem-na, tacteiem-na suavemente, e tracem-lhes as formas difusas. Essa dor, esse amor perdido, é isso mesmo, um amor que se perdeu ao virar o cabo da memória. O amor que se perdeu e se tornou dor. Quando a dor se torna mais forte que a relação e põe abaixo o amor e sem permissão transforma-se em fantasma. Somos vozes fantasmas. Matamos a dor, tornamo-la fantasma, e maltratamos amor e damos-lhe a oportunidade de ser fantasmas. Misturamos e temos o fantasma mais forte de nós: o nó bem apertado que sufoca quando vemos o nosso amor e continuamos a dar-lhe a visão do horizonte. Apenas. Damos-lhe o sonho e enganamo-nos a empalidecê-lo. Lacrimejamos e damos-lhe a permeabilidade aquosa do lago choroso dos nossos olhos. Esquecemo-nos de chorar para não acordarmos os fantasmas quando eles são os nossos mais belos e ternos amigos. Somos os fantasmas mais bem sucedidos do mundo. Passamos por nós, pelos outros, tocamos-lhes, muitas vezes não guardamos nada. Mentira, pois é. Por não saber, por não conseguir, por não olhar o amor nos olhos quando a dor sobe aos céus e nos ameaça tirar dos tronos. Que tire, que tire aquilo que quiser porque o meu trono já o perdi há muito tempo. Perdi-o quando te beijei na face e me lembrei que os meus fantasmas são estações da memória que têm bilhetes para um comboio que não existe. E por isso, não são mais nem menos do que eu. São eu próprio no comprimento e na largura astronómica da minha vida. Sou, mas não só, uma casa com fantasmas, os mesmos que me permitem amar-te como se já te tivesse amado para sempre.

1 comment:

Anonymous said...

Gostei muito :)
Fica um poema, na esperança que estejamos sempre povoados de fantasmas:
"Aprendi a usar as palavras
Como defesa e em desafio.
Armas de arremesso
Trocas de tiros verbais.
Hoje
Tento suavizá-las.
Mas saem sempre em luta
Mesmo
Quando a palavra é paz
Mesmo
Quando a palavra é amor."